segunda-feira, 5 de maio de 2008

Memórias de um Michê – Faces Brasílicas






Apesar de contarem histórias completamente distintas, tratando cada uma de um tema específico, Dias Gomes e Nelson Rodrigues lançam mão, em O Pagador de Promessas e Os Sete Gatinhos respectivamente, de uma espécie não rara –e longe de correr o risco de extinção em solo brasileiro: o malandro carismático que seduz tanto mulheres de papel (e as de carne e osso), quanto o público leitor em geral.



Além de serem elementos constitutivos (e por que não dizer caracterizadores) da realidade brasileira, Bibelot e Bonitão , de certa forma, desempenham, nos dramas, a função de sintetizar e simbolizar a discrepância entre a casca e o cerne: entre aparência e realidade; já que tanto um quanto o outro possuem uma aparência impecável –são atraentes e vestem-se sempre com muito alinhamento, usam ternos bem cortados e engomados – o que se contrasta e contrapõe à essência desses personagens: completamente poluídas e destituídas de valores e de uma consistência moral.

Desse modo, ambos são emblema perfeito para os dramaturgos discutirem uma sociedade revestida por uma fina película de hipocrisia- prestes a ser rompida- que encapsula podridões morais, atitudes e comportamentos inconfessáveis. Com precisão cirúrgica, os autores , munidos pelo bisturi da escrita, rompem com a camada epidérmica que esconde e reveste o funcionamento real do organismo-sociedade, composto de engodos e nutrido de hipocrisia.

No filme dirigido por Anselmo Duarte, esse caráter simbólico do cafetão Bonitão fica bastante evidente: ele representa uma sociedade corrompida e esvaziada eticamente em seus diversos níveis. É ele quem primeiro engana Zé do Burro, aproveitando-se da sua boa fé e ingenuidade, quando oferece um quarto de hotel para que a esposa do agricultor passe uma noite mais confortável. Zé, que até então vivia pacatamente no interior, seguro nesse universo de origem (habitado por seus semelhantes), nem desconfia das reais intenções do cafetão e termina por convencer a esposa a aceitar a oferta do estranho. Essa cena é importante para o desenrolar do drama, pois demonstra a ignorância do pobre pagador de promessas diante de um mundo novo, desconhecido, estranho, da cidade grande. Ignorância essa que permitirá que outros personagens tirem proveito da situação, como é o caso do jornalista encarnado por Othon Bastos, que distorce toda a história de para torná-la mais atraente ao público. Há, aqui, uma clara crítica aos meios de comunicação que, muitas vezes, movidos por uma fome mercadológica (ou interesses escusos) recriam realidades, vendendo-as como verdades. Dias Gomes também critica a Igreja, assim como as relações promíscuas desta com a política.

Se em O Pagador de Promessas, Zé do Burro é o único que mantém uma conduta de comportamento coerente com seus valores e princípios (o que culmina no seu trágico final), em Os Sete Gatinhos , ironicamente, o único personagem autêntico –que não usa disfarces, apresentando-se explicitamente como possuidor de um caráter falhado, sem nenhum pudor disso, é Bibelot ; visto que todos os outros personagens escondem algum segredo: não são realemente – ou exatamente –o que aparentam ser. Exemplos dessa hipocrisia generalizada vão desde Dona Aracy – que secretamente escrevia obscenidades nas paredes do banheiro –, passando por Seu Saul –que escondia o ferimento de guerra, impedimento para o exercício de sua sexualidade –, chegando até Seu Noronha –que cafetinava as próprias filhas “por baixo dos panos”.

Esse autêntico cafajeste ocupa um papel importante na história, pois, ao desonrar e engravidar Silene (e, por conseqüência romper violentamente com o “projeto moralizante” de toda a família do Seu Noronha) , promove o desmantelamento da aparente “tranqüilidade” familiar, posto que, é a partir da descoberta de que Silene não era tão angelical como todos pensavam que se inicia o ciclo de descobrimento dos segredos das personagens. O choque entre aparência e realidade.

Um comentário:

Heduardo Kiesse disse...

adorei o titulo do teu blog, voltarei com mais atenção...
abraços