“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,As sensações renascem de si mesmas sem repouso,Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”
“Eu sou trezentos”, Mário de Andrade.
Em “Modernismo Brasileiro e Vanguarda”, Lúcia Helena traça um panorama sobre o movimento modernista brasileiro, demonstrando como a constituição deste recebeu influências das vanguardas européias do início do século XX. Primeiramente, a autora assinala a relevância do contexto histórico para o surgimento das vanguardas: tratava-se de um momento crítico, no qual o mundo ocidental encontrava-se imerso em uma grave crise – período que abarca os eventos geradores da primeira (1914-1918) e segunda (1939-1945) guerras mundiais. Assim, os movimentos vanguardistas são a resposta-produto artístico-cultural de um tempo de grande contestação e inquietação. Por isso, os mais variados movimentos vanguardistas apresentam como ponto convergente o questionamento sobre o legado cultural recebido e a fossilização (ou engessamento) dos padrões de criação artística. Nas palavras de Lúcia Helena, todos concordavam com a falência dos “moldes acadêmicos e conservadores de uma arte envelhecida e cristalizada” (p. 6).
É como eco desta atitude ocidental contestatória que é engendrado o modernismo brasileiro, nascido, efetivamente, como um movimento irreverente e rebelde –na sua fase denominada “heróica”– que visava (entre outras questões) refletir sobre os procedimentos de criação artística e promover a construção de uma feição identitária brasileira – e, com isso, discutir a dependência cultural brasileira em relação à Europa. Segundo a autora, é o nacionalismo um dos principais fatores que permite a visualização da relação existente entre modernismo brasileiro e as vanguardas européias.
Neste sentido, a obra “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, pode ser compreendida como simbólica do ideário modernista no Brasil, visto que abrange em termos temáticos e estruturais as principais questões pulsantes que moviam as discussões estéticas tipicamente modernas.
Lúcia Helena observa que o modernismo brasileiro possui características peculiares, posto que se desenvolve em um contexto sócio-histórico-cultural diverso do europeu. Além disso, o fato de ser a sociedade brasileira refratária a mudanças contribuiu para a formação do modernismo como um movimento composto por várias vertentes (dinamistas, primitivistas, nacionalistas, espiritualistas, desvairistas e independentes), o que se percebe claramente por meio da leitura dos manifestos e revistas divulgadores do movimento.
A estrutura da rapsódia de Andrade – que transita por estilos diferentes de narrar (pelo menos três, de acordo com Alfredo Bosi, que identifica um estilo de lenda, épico-lírico; um estilo de crônica, cômico e despachado e um estilo paródico) pode ser entendida como representativa desta ausência de homogeneidade nas idéias e linhas de expressão defendidas e seguidas pelos modernistas brasileiros.
Em termos temáticos, lê-se “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” como uma tentativa de construção da identidade brasileira. Identidade esta formada a partir de enorme multiplicidade cultural e étnica. Macunaíma seria o brasileiro típico “que não possui nenhum caráter”, sendo que caráter aqui não tem exclusivamente uma conotação moral, mas, sim, como descreve Mário em carta enviada a Carlos Drummond de Andrade, compreende uma ausência de características definidas: “[...] com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral, não. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. Percebe-se, portanto a preocupação do autor com a questão da concepção da nacionalidade, traço comum a todas as vanguardas européias.
Esta preocupação se desdobra em muitos sentidos na elaboração de “Macunaíma”, no entanto, é, sobretudo pelo tratamento dado à linguagem, que ela fica mais ressaltada. O reconhecimento e valoração dos elementos culturais (e mesmo regionais) tipicamente brasileiros ganha uma maior expressão pela linguagem. Valorizar a oralidade, ou melhor, criar um discurso narrativo (há marcas de oralidade não apenas na fala das personagens, mas também no discurso do narrador) que se aproxima do falar cotidiano é delinear a existência de um português característico do Brasil, diferente do português de Portugal, ou do português acadêmico ou clássico utilizado até então nas manifestações literárias. Exemplos diversos podem ser encontrados ao longo das páginas, dentre eles: “– Abra a porta pra mim entrar” (p.30); “ Eh! dessa ele nunca poderia esquecer não” [...] (p.37), a negação dupla tipicamente brasileira; “Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré” (p.47).
Há, no capítulo IX, intitulado “Carta pras Icamiabas”, uma crítica em tom satírico acerca da distancia entre esses dois níveis da linguagem, o português falado e o escrito:
“Ora sabeis que sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra [...] Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade [...] Mas [...] logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana [...]”. (p.78)
Além destes aspectos, determinados elementos presentes em “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” podem ser observados como pontos de contato com as vanguardas. A busca pela definição de uma identidade nacional (já apontada anteriormente), a antilógica, a liberdade da imaginação e da linguagem (do futurismo); certo diálogo com o dadaísmo e surrealismo no sentido de que há na obra uma subversão das categorias de tempo, espaço, e ação – que não seguem a lógica racional.
A representação literária do subconsciente – característica do surrealismo – está calcada na criação de “realidades” ilógicas, isto é, que escapam ao pensamento lógico e racional. Aos surrealistas interessa a investigação de temas não explorados por aqueles que os antecederam, tais como: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, em outras palavras “tudo que é inverso à tradição da lógica e da racionalidade” (HELENA, p 35). Isto fica evidente, no livro de Mário, no que se refere à construção da personagem principal – visto que ela é extremamente mutável: Macunaíma sofre inúmeras transformações – de criança feia passa a príncipe encantado, depois Imperador do Mato-Virgem, em seguida malandro na cidade de São Paulo, até transformar-se na constelação Ursa Maior (sem falar nas variações raciais, pelas quais passa a personagem).
A subversão espaço-temporal é revelada pela trajetória de Macunaíma feita de várias fugas e percursos ilógicos em busca da sua Muiraquitã. O “herói” percorre lugares bastante distanciados geograficamente em curtos espaços de tempo, o que indica que o escritor não está comprometido com uma representação realística, verossímil. Pelo contrário, estão em cena um tempo e um espaço “mágicos”.
Do mesmo modo que Lúcia Helena considera a vanguarda histórica como “expressão de um tempo em crise” e como “um inquietante desencadeador de perspectivas que mobilizaram, produtivamente, o novo século”, podemos apontar “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” como importante marco não só em termos literários (devido às inovações estéticas experimentadas), mas também em termos sociológicos e antropológicos para uma compreensão mais apurada e ampla do que é ser brasileiro. Talvez seja esta, em última análise, a característica que aproxima a obra de Mário de Andrade às vanguardas européias: a abertura, pela ruptura, de novas perspectivas de produção artística e estética e, mesmo de reflexão sobre a própria condição de ser.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mário. Macunaíma. : o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
HELENA, Lucia. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo: Ática: 1989.
LAFETÀ, João Luiz. Mário de andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1990.
www. portrasdasletras.com.br
“Eu sou trezentos”, Mário de Andrade.
Em “Modernismo Brasileiro e Vanguarda”, Lúcia Helena traça um panorama sobre o movimento modernista brasileiro, demonstrando como a constituição deste recebeu influências das vanguardas européias do início do século XX. Primeiramente, a autora assinala a relevância do contexto histórico para o surgimento das vanguardas: tratava-se de um momento crítico, no qual o mundo ocidental encontrava-se imerso em uma grave crise – período que abarca os eventos geradores da primeira (1914-1918) e segunda (1939-1945) guerras mundiais. Assim, os movimentos vanguardistas são a resposta-produto artístico-cultural de um tempo de grande contestação e inquietação. Por isso, os mais variados movimentos vanguardistas apresentam como ponto convergente o questionamento sobre o legado cultural recebido e a fossilização (ou engessamento) dos padrões de criação artística. Nas palavras de Lúcia Helena, todos concordavam com a falência dos “moldes acadêmicos e conservadores de uma arte envelhecida e cristalizada” (p. 6).
É como eco desta atitude ocidental contestatória que é engendrado o modernismo brasileiro, nascido, efetivamente, como um movimento irreverente e rebelde –na sua fase denominada “heróica”– que visava (entre outras questões) refletir sobre os procedimentos de criação artística e promover a construção de uma feição identitária brasileira – e, com isso, discutir a dependência cultural brasileira em relação à Europa. Segundo a autora, é o nacionalismo um dos principais fatores que permite a visualização da relação existente entre modernismo brasileiro e as vanguardas européias.
Neste sentido, a obra “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, pode ser compreendida como simbólica do ideário modernista no Brasil, visto que abrange em termos temáticos e estruturais as principais questões pulsantes que moviam as discussões estéticas tipicamente modernas.
Lúcia Helena observa que o modernismo brasileiro possui características peculiares, posto que se desenvolve em um contexto sócio-histórico-cultural diverso do europeu. Além disso, o fato de ser a sociedade brasileira refratária a mudanças contribuiu para a formação do modernismo como um movimento composto por várias vertentes (dinamistas, primitivistas, nacionalistas, espiritualistas, desvairistas e independentes), o que se percebe claramente por meio da leitura dos manifestos e revistas divulgadores do movimento.
A estrutura da rapsódia de Andrade – que transita por estilos diferentes de narrar (pelo menos três, de acordo com Alfredo Bosi, que identifica um estilo de lenda, épico-lírico; um estilo de crônica, cômico e despachado e um estilo paródico) pode ser entendida como representativa desta ausência de homogeneidade nas idéias e linhas de expressão defendidas e seguidas pelos modernistas brasileiros.
Em termos temáticos, lê-se “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” como uma tentativa de construção da identidade brasileira. Identidade esta formada a partir de enorme multiplicidade cultural e étnica. Macunaíma seria o brasileiro típico “que não possui nenhum caráter”, sendo que caráter aqui não tem exclusivamente uma conotação moral, mas, sim, como descreve Mário em carta enviada a Carlos Drummond de Andrade, compreende uma ausência de características definidas: “[...] com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral, não. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. Percebe-se, portanto a preocupação do autor com a questão da concepção da nacionalidade, traço comum a todas as vanguardas européias.
Esta preocupação se desdobra em muitos sentidos na elaboração de “Macunaíma”, no entanto, é, sobretudo pelo tratamento dado à linguagem, que ela fica mais ressaltada. O reconhecimento e valoração dos elementos culturais (e mesmo regionais) tipicamente brasileiros ganha uma maior expressão pela linguagem. Valorizar a oralidade, ou melhor, criar um discurso narrativo (há marcas de oralidade não apenas na fala das personagens, mas também no discurso do narrador) que se aproxima do falar cotidiano é delinear a existência de um português característico do Brasil, diferente do português de Portugal, ou do português acadêmico ou clássico utilizado até então nas manifestações literárias. Exemplos diversos podem ser encontrados ao longo das páginas, dentre eles: “– Abra a porta pra mim entrar” (p.30); “ Eh! dessa ele nunca poderia esquecer não” [...] (p.37), a negação dupla tipicamente brasileira; “Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré” (p.47).
Há, no capítulo IX, intitulado “Carta pras Icamiabas”, uma crítica em tom satírico acerca da distancia entre esses dois níveis da linguagem, o português falado e o escrito:
“Ora sabeis que sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra [...] Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade [...] Mas [...] logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana [...]”. (p.78)
Além destes aspectos, determinados elementos presentes em “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” podem ser observados como pontos de contato com as vanguardas. A busca pela definição de uma identidade nacional (já apontada anteriormente), a antilógica, a liberdade da imaginação e da linguagem (do futurismo); certo diálogo com o dadaísmo e surrealismo no sentido de que há na obra uma subversão das categorias de tempo, espaço, e ação – que não seguem a lógica racional.
A representação literária do subconsciente – característica do surrealismo – está calcada na criação de “realidades” ilógicas, isto é, que escapam ao pensamento lógico e racional. Aos surrealistas interessa a investigação de temas não explorados por aqueles que os antecederam, tais como: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, em outras palavras “tudo que é inverso à tradição da lógica e da racionalidade” (HELENA, p 35). Isto fica evidente, no livro de Mário, no que se refere à construção da personagem principal – visto que ela é extremamente mutável: Macunaíma sofre inúmeras transformações – de criança feia passa a príncipe encantado, depois Imperador do Mato-Virgem, em seguida malandro na cidade de São Paulo, até transformar-se na constelação Ursa Maior (sem falar nas variações raciais, pelas quais passa a personagem).
A subversão espaço-temporal é revelada pela trajetória de Macunaíma feita de várias fugas e percursos ilógicos em busca da sua Muiraquitã. O “herói” percorre lugares bastante distanciados geograficamente em curtos espaços de tempo, o que indica que o escritor não está comprometido com uma representação realística, verossímil. Pelo contrário, estão em cena um tempo e um espaço “mágicos”.
Do mesmo modo que Lúcia Helena considera a vanguarda histórica como “expressão de um tempo em crise” e como “um inquietante desencadeador de perspectivas que mobilizaram, produtivamente, o novo século”, podemos apontar “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” como importante marco não só em termos literários (devido às inovações estéticas experimentadas), mas também em termos sociológicos e antropológicos para uma compreensão mais apurada e ampla do que é ser brasileiro. Talvez seja esta, em última análise, a característica que aproxima a obra de Mário de Andrade às vanguardas européias: a abertura, pela ruptura, de novas perspectivas de produção artística e estética e, mesmo de reflexão sobre a própria condição de ser.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mário. Macunaíma. : o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
HELENA, Lucia. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo: Ática: 1989.
LAFETÀ, João Luiz. Mário de andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1990.
www. portrasdasletras.com.br
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